Depois do desvario gastronômico das
festas de Natal e da virada, não
há nada melhor para começar o novo ano do que uma boa crônica sobre…como disse,
minha senhora? “Boa” seria um milagre natalino? Tá bem, vá lá, uma crônica. Como
de hábito a motivação vem do noticiário, temperada com uma pitada do nosso delírio indispensável para diluir a fieira de tragédias do cotidiano. Isto
posto, é hora de falar de batatas.
Por que não tomates, pergunta o
rabugento. Pois falemos destes também. A gentil leitora pondera que uma
manteiguinha por cima cairia bem com a batata assada, mas é rudemente
interrompida pelo rabugento que, por sua vez, não dispensa um gratinado com
queijo ralado no topo dos tubérculos. O marombeiro acrescenta que
gosta mesmo é de muita proteína e pergunta se não vai junto um filé mal passado
ou um belo peixe frito. Por fim manifesta-se o Juquinha, de olho na sobremesa
que, é claro, há de ter chocolate. Menu completo, calam-se todos à espera do convite
para jantar. Nada feito. Trata-se de Ciência. Coisa mais fora de moda, comentam
certos políticos às gargalhadas, a ponto de sufocar com as baforadas de seus caríssimos
charutos Gurkha Black Dragon ou
afogar-se em legítimo uísque escocês, poucos minutos depois de gualdripar a
verba pública para aplicá-la generosamente no bem-estar daqueles com quem
compartilham a privada.
Arre égua, está difícil
bem-humorar sem digressionar. Não obstante, fá-lo-emos – oba, mesóclise! - pois
esse blogue é para relaxar mesmo. Dizíamos, então, que era hora de batatas, mas
acedemos às súplicas de nossos fiéis leitores e acrescentamos outros
ingredientes, já que há uma fartura de descobertas
arqueológicas de comida velha. Velha mesmo, fora da validade, bem mais do que aquele leite em pó que a senhora quase levou do
supermercado, mas descobriu a tempo e passou uma descompostura no
gerente. Muito velha mesmo, milênios além da validade, que tal?
Arqueólogos cansados de desenterrar ruínas,
efígies, armas e ossadas andam, com toda a razão, celebrando descobertas intrigantes sobre a alimentação de nossos antepassados. Às vezes trata-se de fezes
petrificadas, como no badalado caso do palácio de um bispo dinamarquês do
século XVII. Outras vezes a sorte lhes sorri e acham alimentos intactos. Agorinha mesmo foi noticiado que pesquisadores da Universidade da Pensilvania
encontraram, na Argentina, dois exemplares de tomatillos, um primo do tomate. Diz a notícia que esses frutos são
mais parecidos com cerejas do que com tomates, e que o gosto não é dos
melhores, mas já dá uma satisfação ao rabugento. Só tem um detalhezinho, a
datação dos tomatillos fossilizados
foi estimada em mais de cinquenta milhões de anos. É possível que tenham
passado da validade. Caso contrário, podem ser usados para fazer uma saladinha
com dúzias de tipos distintos de frutos, legumes e grãos encontrados, junto com
restos de ossos de animais e artefatos variados, por um grupo de cientistas de
quatro Universidades israelenses. O achado foi em um sítio arqueológico de quase
oitocentos mil anos de idade, localizado no vale do Rio Jordão, numa região que foi usada como corredor para a dispersão dos ancestrais dos humanos modernos a
partir da África. Essa descoberta está fazendo sucesso, pois desafia a idéia de
que naquela época a dieta era quase exclusivamente à base de proteina de origem
animal. De fato, indícios do consumo de carnes são muito mais fáceis de
encontrar do que das guarnições, já que ao longo de milhares de anos restos
de ossos são, em geral, melhor preservados do que resíduos de vegetais e não fazem justiça à variedade de acompanhamentos das refeições de antanho.
Voltando às batatas, pesquisadores
canadenses descobriram, na região da Colúmbia Britânica, uma estrutura de pedras
organizadas de modo a delimitar um espaço contendo mais de três
mil exemplares de um tipo de batata, chamada wapato – pronuncia-se “uápatuu”. A wapato é o tubérculo da raiz de uma planta com folhas em formato
de ponta de seta, que cresce e floresce em locais pantanosos e costuma servir
de alimento para patos, daí seu outro nome duck
potato. É nativa do noroeste das Américas, e foi também naturalizada em
muitos países da Europa, mas em alguns é considerada uma praga. E o que há de interessante nisso se, só
no Peru, existem três mil e oitocentas variedades de batatas? É que o tal sítio
arqueológico tem quase quatro mil anos e, embora haja relatos documentados
de jardins muito mais antigos no Egito, o “parquinho das batatas” é celebrado como
a mais antiga estrutura artificial encontrada em uma escavação, que parece verdadeiramente
destinada à produção de um alimento. A construção do cercadinho foi
feita com pedras de formato regular, muitas das quais aparentemente
moldadas a fogo, e contém pontas de lanças que podem ter sido usadas para
cavucar o fundo de forma a soltar os tubérculos, que é o jeito de fazer
flutuarem as wapato. Isso é um sinal claro de que o
jardinzinho pantanoso foi propositalmente destinado à alimentação humana. Para os interessados, no Youtube há vídeos nos
quais exímios naturebas mostram como colher wapato
e garantem que a batatinha é comestível quando devidamente assada.
De quebra, podemos acrescentar um aglomerado de manteiga maior do que uma bola de
basquete, desenterrado de um pântano na Irlanda, e cuja idade foi
estimada em dois mil anos. As reportagens dizem que a tal manteiga ainda seria
comestível, porém de nossa parte não há a menor intenção de experimentar a
iguaria. Ainda assim enriquece o menu, assim como os restos de queijo torrrado
identificados no fundo de um pote com três mil anos de idade, que foi encontrado
na península da Jutlândia, em território da Dinamarca.
Juntando tudo isso já dá para preparar
uma batatas gratinadas no forno de pedra de mil e seiscentos anos de idade, que
o arqueólogio Bob Dawe encontrou em 1990 na encosta de
um morro na provínicia de Alberta, no Canadá. Recentemente o trambolho foi
cuidadosamente transportado para o Museu de Alberta para ser examinado, e Dawe
acha que lá dentro há uma refeição completa, que estaria assando quando foi
abandonada às pressas, quiçá porque algum invasor botou o cozinheiro para
correr. O cientista crê que pode haver nesse forno um belo bife de bisão, o
qual cairia bem com batatas gratinadas e uma saladinha. Já para os que não
comem carne vermelha, sempre se pode fritar naquela manteiga irlandesa os restos de peixes de
água doce que pesquisadores de Universidades britânicas encontraram em
potinhos desenterrados de um sítio arqueológico com mais de seis mil anos de
idade. Essa descoberta também foi considerada muito importante, por indicar que
mesmo quando nossos ancestrais sairam do estágio de caçadores-coletores para inaugurar
a agricultura e a pecuária, não deixaram de pescar seus peixinhos.
E assim, o menu do bistrô está quase completo, com exceção da sobremesa do Juquinha. Mas o
guri ficará feliz em saber que, diferente da idéia de que antes da invasão
espanhola o cacau era usado na América Central apenas para preparar bebidas,
cientistas do Instituto Nacional de Antropologia e História do México encontraram
na península de Yucatán traços de cacau em um prato de dois mil e quinhentos
anos de idade, o que sugere o uso antiquíssimo de um “molho de chocolate” numa refeição sólida. Coisa essa que faz parte da culinária mexicana até hoje,
com seus moles poblanos que
acompanham carnes variadas. Daqui ouvimos o garoto reclamar que isso não
tem nada a ver com a torta de chocolate da vovó ou o brownie da titia, mas foi o que se pode arranjar. Quem sabe em
breve não será descoberta, em algum sítio arqueológico nos Alpes ou esquecida num canto de um depósito do
Laténium de Neuchâtel, uma barra inteira do melhor chocolate suíço com mais de
dois mil anos de idade, esperando apenas ser catalogada por um cientista
guloso.
Bon
apétit.
Rafael Linden
Uma delícia de crônica! [x]
ResponderExcluir😀
ExcluirBjs
Uma cronica saborosíssima!
ResponderExcluir😀
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